Sobre Vilém Flusser, imagens aumentadas e aparições site-specific
A 12ª Bienal de São Paulo, realizada em 1973, não é um evento fácil de reconstituir ou compreender. Ela ocorreu durante a ditadura militar brasileira, um período de censura e controle político, e sob a sombra do boicote internacional convocado em 1969. Nesse contexto, essa edição da Bienal abriga diversas tentativas fragmentadas de repensar a mostra de forma estrutural e de exercer uma resistência criativa, como observa Isobel Whitelegg. Uma das seções livres da Bienal foi intitulada “Arte e Comunicação”, propondo um formato que se distanciava das exposições tradicionais de cubo branco. Por trás dessa tentativa estava, entre outros, Vilém Flusser, filósofo nascido na Checoslováquia, que emigrou para o Brasil em 1940 para escapar da ascensão do nazismo na Europa. Flusser passou várias décadas no Brasil desenvolvendo um amplo e por vezes polêmico corpus teórico, que abrange estudos sobre linguagem, comunicação e cultura, fundamentados em teorias existencialistas e fenomenológicas. Em 1972, pouco antes da abertura da Bienal, ele fugiu novamente – desta vez de volta à Europa – para escapar do regime militar opressor do presidente Emílio Garrastazu Médici.
Flusser fez parte da equipe que desenvolveu o marco temático da Bienal, sugerindo “um novo sistema de organização pelo qual ideias relacionadas a artistas específicos seriam usadas para criar equipes interdisciplinares envolvendo participantes brasileiros.” Esse projeto, ambicioso e de difícil viabilização financeira, acabou sendo reduzido a uma lista de temas após sua renúncia. Ainda assim, vestígios de suas ideias – como a incorporação da participação do público em tempo real – podiam ser percebidos em algumas das instalações que ocuparam o Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Trabalhos como Faixa de segurança, do Grupo Segurança, encenavam uma faixa de pedestres dentro do Pavilhão da Bienal, transformando-o em um espaço vibrante e desafiador que refletia tensões urbanas e políticas. De modo semelhante, Visite o Inferno e encontre você, de Vera de Figueiredo, convidava os participantes a entrar por uma boca aberta e seguir pela “língua” da instalação, onde encontravam um espelho refletindo a própria imagem. Em condições quase impossíveis, essa edição da Bienal – e os módulos sugeridos por Flusser – introduziram elementos experimentais que desafiavam o regime e apresentavam ideias alternativas de arte e de montagem expositiva. A mostra enfatizava processos em vez de objetos finalizados e estimulava novas formas de interação entre artistas e público.
Mais de meio século depois, Aparições é um experimento que busca continuar nesse mesmo caminho. Para a 36ª edição da Bienal de São Paulo, que de forma parecida coloca seu peso temático nos processos, uma expansão aumentada da Bienal difunde cópias, ecos, fontes de arquivo e outras aparições digitais relacionadas às obras apresentadas no Brasil em locações específicas ao redor do mundo. A cada dia da Bienal, uma nova aparição é revelada em seu contexto escolhido, acrescentando à obra exposta uma âncora contextual em outro lugar. Utilizando ferramentas de Realidade Aumentada (AR) e localização por GPS fornecidas pela plataforma sem fins lucrativos WAVA, essas obras digitais tornam-se acessíveis apenas de forma presencial, surgindo como parte do ambiente e do contexto em que se inserem. A seguir, procurarei traçar brevemente a estrutura da imagem aumentada – tanto em relação à própria tecnologia quanto ao ambiente que ela habita, tomando como base o mapeamento da imagem técnica proposto por Flusser – e discutir as potencialidades e urgências dessas aparições virtuais.
Revelar
Diferente de uma simples sobreposição ou projeção, a realidade aumentada (AR) integra de forma fluida componentes virtuais ao ambiente físico imediato, fazendo-os parecer objetos tangíveis dentro do espaço. Ao ativar o modo câmera de dispositivos portáteis como smartphones ou tablets, o entorno passa a ser traduzido em uma imagem técnica em tempo real (para já usar o termo de Flusser). É sobre essa superfície computada que entra o elemento aumentado – seja em 3D, 2D ou apenas sonoro –, aparecendo em relação aos demais elementos ao seu redor. Esse efeito é gerado pela capacidade do dispositivo de analisar, mapear e processar o ambiente em milissegundos, permitindo o posicionamento preciso dos elementos virtuais dentro da cena híbrida. O que à primeira vista parece uma representação plana é, na verdade, um espaço virtual tridimensional composto.
Em outro momento, argumentei que, quando uma obra virtual emerge no “mundo real”, duas coisas acontecem simultaneamente. Em primeiro lugar, ela interage com o local onde é inserida, desafiando e transformando esse espaço de forma parecida ao que ocorre, por exemplo, com a arte de rua, o grafite ou a performance, que reconfiguram o entorno. Em segundo lugar, o ato de aumentar revela a infraestrutura subjacente – a vasta e complexa rede que sustenta a ilusão da realidade aumentada. Esse efeito duplo se assemelha à função ambivalente da tela, que ao mesmo tempo abre uma janela para um espaço (um mundo) e bloqueia (screen, em inglês) o que está fisicamente por trás dela. A imagem em AR, portanto, é ao mesmo tempo transparente e opaca, presente e ausente.
Em seu livro Ins Universum der technischen Bilder [O universo das imagens técnicas], escrito em 1985, Vilém Flusser argumenta, de modo bastante contraintuitivo, que as imagens técnicas – como fotografias ou vídeos – nada têm a ver com a representação da realidade. “Todas as imagens técnicas são visualizações”, afirma ele, pois resultam de uma máquina que processa dados brutos e os transforma em um formato visual. Com uma câmera digital, por exemplo, os dados de luz são convertidos em sinais eletrônicos que o software traduz em um resultado visualmente compreensível para nós, espectadores. Seguindo essa lógica, podemos perceber que as imagens produzidas não são meras reflexões da realidade do ponto de vista técnico, mas dizem respeito a abstrair, converter e exibir informações por meio de processos de computação. Esses não são instrumentos passivos ou neutros, com os quais veríamos o mundo de forma “objetiva”, como ele é, mas sim processos ativos de interpretação mecânica.
Para Flusser, isso corresponde a uma mudança mais profunda em nosso modo de estar no mundo. As imagens técnicas já não são criadas por seres humanos que fazem escolhas intencionais sobre o que representar, como ou por quê – como faria um pintor, por exemplo. Em vez disso, elas são geradas por máquinas que processam dados de acordo com algoritmos pré-programados, muitas vezes sem qualquer intervenção humana além da definição de seus parâmetros. Nesse sentido, para Flusser, uma pintura de uma casa seria mais representativa do que uma fotografia da mesma casa, ainda que esta última pretenda ser mais objetiva. Por se tratar de uma visualização abstrata de dados, a imagem técnica deixa de ser um signo ou símbolo de algo que exista além dela mesma (hoje, com a ascensão das imagens geradas por inteligência artificial, é muito mais fácil acompanhar e compreender a lógica de Flusser).
A função de pré-visualização ao vivo (live-preview / live view) é um caso de estudo fascinante e um componente crucial da imagem aumentada. Introduzida nas câmeras digitais em meados da década de 1990, a pré-visualização ao vivo permite a formação de imagens em tempo real, exibindo na tela exatamente o que o sensor da câmera está captando. Nos smartphones, por exemplo – dispositivo que é a própria tela –, esse modo cria uma ilusão de transparência, pois a tela “desaparece”, transformando-se em uma janela contínua para o mundo. Aqui, o truque de mágica é duplo. Primeiro, a imagem técnica gerada em tempo real pelos processadores do smartphone se disfarça de representação, e não de visualização; em segundo lugar, ocorre o ato de desaparecimento do próprio dispositivo. Quando a tela se torna “transparente”, todo o aparato – isto é, o dispositivo em si, com seus parafusos, circuitos, cabos e processadores ocultos – desaparece. Além disso, é toda a infraestrutura planetária que se torna invisível – fazendas de servidores, satélites, cabos submarinos e redes de transmissão que trabalham invisivelmente para oferecer retorno instantâneo. Esse “desfoque de movimento” da imediaticidade oculta as bases físicas, ambientais e éticas da tecnologia. E, à medida que a moldura do smartphone se torna cada vez mais fina nas mãos dos designers, também se aprofunda a imersão desses dispositivos em nossas vidas, a ponto de ser difícil discernir onde termina um e começa o outro.
Então, como a geada sobre uma janela ou uma rachadura na tela, quando o ato de aumentar aparece, ele torna a própria tela visível enquanto tal. Ele revela a superfície que habita, expondo a ilusão de continuidade perfeita da qual todo o aparato depende, ao mesmo tempo em que perturba o espaço aparentemente neutro da imagem em “live view”. Como pode esse ato complexo manifestar-se dentro dessa “janela para o mundo” plana e simples? A uma observação mais atenta, ele revela a imagem “live view” exatamente pelo que ela é – uma visualização processada em tempo real de dados renderizados de modo a ser reconhecida por nós como uma extensão de nosso entorno.
Aumentar
Quando situada de forma site-specific, uma obra aumentada não apenas revela a opacidade do próprio dispositivo (uma tela que oculta, um computador que processa). Ela ativa ao mesmo tempo o entorno imediato (um mundo, um espaço). Em outro momento, referi-me a esse fenômeno em termos arendtianos como um espaço de aparecimento aumentada, enfatizando a relevância da obra para o lugar que ela habita e no qual ela se manifesta (sem ser convidada). Segundo Flusser, a imagem técnica transformou o espaço público – antes uma arena central de comunicação e encontro – em um domínio de desinformação programada. É por meio de sua análise sobre o cinema e o filme que podemos vislumbrar o espaço de aparecimento aumentada e o seu potencial político.
A imagem técnica mantém seus receptores afastados uns dos outros e enfraqueceu – senão desmantelou – o poder político do espaço público. Flusser argumenta que o mercado, a escola e a praça pública deixaram de ser lugares aos quais se vai para se informar, já que agora toda a informação chega de forma direta ao espaço privado. Mesmo quando as pessoas ainda se reúnem, não se trata de uma assembleia política, pois, como ele observa, “o objetivo da manifestação política não é mudar o mundo, mas ser fotografada”.
A única exceção no argumento de Flusser poderia ser, em suas próprias palavras, o filme, já que o cinema ainda parece atrair as pessoas do espaço privado para o público, criando um espaço coletivo e reflexivo. Ainda assim, ele sugere que essa natureza pública é apenas incidental – enraizada em uma tecnologia obsoleta, que exige que os receptores se reúnam em um mesmo lugar para ter acesso ao emissor:
“Poder-se-ia afirmar que, no filme, uma imagem técnica realiza um gesto político ao atrair as pessoas do espaço privado para o público. E, se o cinema fosse de fato um teatro, ou seja, um lugar de visibilidade, de ‘teoria’, então poder-se-ia dizer que o filme é um caso de imagem técnica que mostra ao espectador como ver através das aparências e libertar-se da imagem. Infelizmente, essa é uma visão equivocada. O filme é exibido em salas de cinema não para despertar uma consciência política ou filosófica em seus espectadores, mas porque depende de uma tecnologia do século 19, época em que os receptores ainda precisavam ir até o emissor.”
Curiosamente, a realidade aumentada site-specific tem o potencial de cumprir essa promessa de maneiras que o cinema não pode. Diferente do filme, as intervenções virtuais no espaço público não dependem de um local fixo e desconectado – uma “caixa preta” – para invocar uma experiência compartilhada. Em vez disso, a realidade aumentada integra conteúdo virtual diretamente aos ambientes do mundo real, permitindo que imagens técnicas existam dentro de outras imagens técnicas – uma aumentação sobre uma superfície de visualização em tempo real – e interajam com o próprio espaço. Esses atos de aumentar recontextualizam o espaço físico, tornando visíveis camadas de relações que frequentemente permanecem ocultas. Ao mesmo tempo, desestabilizam a imagem técnica, fazendo-a refletir sobre si mesma, como o espelho ao final da instalação de Vera de Figueiredo. Ao fazer isso, a realidade aumentada localizada envolve o público em processos ativos de participação e interpretação, com potencial para despertar uma consciência política e filosófica que abre caminho para um espaço de aparição ampliado.
Aparecer
Assim como nas ambições de Flusser para a 12ª Bienal de São Paulo, Aparições busca desafiar as noções convencionais de montagem expositiva e o papel da arte na esfera pública. Ao ancorar obras virtuais em locais específicos, Aparições possibilita experiências coletivas enraizadas em contextos sociopolíticos imediatos, diluindo as fronteiras entre emissor e receptor e conectando diferentes localidades e temporalidades. Com inúmeras intervenções site-specific em diferentes locais ao redor do mundo, ela promove o encontro e a participação ativa em espaços onde as imagens técnicas deixam de dominar de forma passiva para convidar à investigação. Cada aparição virtual atua como uma centelha – um encontro efêmero, mas significativo, que transforma o espaço público em um lugar de visibilidade e reflexão, onde as aparências e as imagens técnicas são questionadas, e onde uma consciência política ou teórica pode emergir.
Lendo Flusser hoje, é impossível não sentir uma certa melancolia diante de um de seus maiores pontos cegos – sua incapacidade de prever o quão fácil empresas com fins lucrativos e indivíduos poderiam apropriar-se desses espaços digitais e reivindicá-los como seus. De fato, em um momento marcado pela ascensão das oligarquias tecnológicas, dos neofeudalismos digitais e pela dominação do capital em nuvem, nossos espaços compartilhados – digitais e físicos – são cada vez mais moldados pelas prioridades de poucas corporações poderosas. Deixar esses espaços inteiramente nas mãos das grandes empresas de tecnologia equivale a aceitar que não há escapatória das zonas de controle, vigilância e desinformação movida pelo lucro. Por isso, manter aberturas para a intervenção artística dentro desses mesmos marcos tecnológicos é fundamental – não apenas para reivindicar essas ferramentas como plataformas de engajamento criativo e crítico, mas também para desestabilizar o próprio aparato, resistindo à monopolização das narrativas e garantindo que os espaços de diálogo e dissenso permaneçam acessíveis a todos.
Aparições nos convida a repensar onde a arte pertence e quem detém o poder de apresentá-la – e em que lugares. Ela transgride espaços inesperados, surgindo vívida e desafiadora, ainda que permaneça oculta ao olhar comum. Ao vincular intervenções artísticas a localidades específicas, ao mesmo tempo em que as conecta a uma rede global, Aparições oferece um meio dinâmico para sustentar conversas críticas à distância, fomentando novas ferramentas de encontro e diálogo. Trata-se de um modelo experimental para reivindicar nossos espaços públicos já híbridos e expandir as exposições para além de suas limitações tradicionais de espaço e tempo, inserindo-as em contextos e comunidades específicas ao redor do mundo.