As obras de Sara Sejin Chang (Sara van der Heide) operam no campo da cura, do pertencimento e da reparação histórica na medida em que esmiúçam os sistemas eurocêntricos de categorização e racialização, bem como a penetração destes em diversos níveis da sociedade ocidental contemporânea. Por meio de trabalhos em diferentes mídias, como vídeo, escrita, instalações imersivas e pinturas, a artista produz espécies de evocações espirituais que comunicam o imaterial e dão a ver dimensões políticas e de memória muitas vezes sobrepujadas pela colonialidade. Em Dismemberment [Desmembramento] (2024), os ideais iluministas e modernos europeus são personificados na figura de uma galerista, chamada Europa, interpretada pela atriz alemã Susanne Sachsse. Seu comportamento e suas falas expõem, de maneira perspicaz, as violências que estruturam esses princípios. Chang, no trabalho, representa a si mesma montando a instalação na galeria da personagem de Sachsse, e suas interações demonstram a normalização da persistente racialização dentro da sociedade europeia, que mantém as hierarquias coloniais.
Os abusos e desequilíbrios expostos por essa interação culminam em um ritual no qual as divindades que acompanham a artista se revelam no espaço expositivo. Os deuses coreanos Daesin Halmeoni, o Grande Espírito Avó, e Sansin, o Deus da Montanha, realizam uma cura por meio de Chang no corpo da Europa doente. O ritual é inspirado na prática tradicional do Ssitgimgut, em que a pessoa é desmantelada pelas divindades, e tudo o que já não lhe serve – como a ganância, a arrogância, o abuso ou a doença – é removido, permitindo o renascimento. Dismemberment trabalha com as linhas invisíveis que conectam ancestralidade e espiritualidade à produção artística de Chang, mas também com as linhas que conecta as pessoas imersas no processo de deslocamento de seus territórios de origem para a Europa. Texto e imagens se sobrepõem em uma anamnese da genealogia e do assentamento de gerações de mulheres que vivem sob a hegemonia europeia, enunciando um possível fim dos ciclos de violência que afligem esses corpos.
Em vez de se concentrar no deslocamento ou na busca de espiritualidade, Dismemberment apresenta uma alegoria xamânica e política, na qual os ideais do Iluminismo – há muito utilizados para justificar a dominação colonial – são personificados na figura da galerista Europa. A obra desloca o olhar etnográfico em relação àqueles que foram racializados e examina, em seu lugar, as estruturas e mentalidades daqueles que racializam. A instalação é composta de dois espaços interconectados: uma sala de projeção e uma sala que espelha a galeria exibida no vídeo. Esse espaço funciona ao mesmo tempo como uma galeria de arte – criando um jogo com o olhar etnográfico – e como sala ritual, onde o público se depara com objetos de arte xamânica coreana, como um grande leque, pinturas, formas fálicas e preces em papel, criando um ambiente ritual que borra os limites entre ficção e cerimônia. Por meio dessa metaestrutura e do ritual de Ssitgimgut, que é o ponto alto da obra – em que a Europa doente é desmembrada e purificada por espíritos ancestrais –, a instalação encena uma cura simbólica do corpo colonial e propõe a possibilidade de sua transformação.