Sallisa Rosa trabalha com a memória, formada em peças de barro, desenhos, instalações, fotografias, entre outros meios. Há mistérios encarnados que experimentamos no contato com os objetos e os espaços que ela produz. Nossa presença sensível encontra outras, que ali permanecem há mais tempo, e a história se faz num diálogo em atraso. A coleta é um procedimento central em sua obra. Para seus objetos ou instalações, a artista recolhe o barro de diversos territórios. Pergunto-me se a terra teria uma memória própria – de seus usos e, consequentemente, dos abusos que sofreu. Então, tomo o barro como uma memória ancestral, como o sedimento da história.
A memória também é atributo das plantas, dos animais, dos rios e de outros seres. Todos registram sua trajetória, a absorção do tempo e as transformações do lugar. Galhos, por exemplo, revelam as formas com que uma árvore responde à escassez ou abundância de água, às mudanças no solo, ao ar, às interações com outros corpos. Ao lidar com essa matéria, Sallisa Rosa atua com um material histórico. Quando coleta elementos para suas obras, talvez esteja recolhendo documentos de uma história ainda não contada, elaborada pelos gestos de construir. Questiono-me se seria possível herdar gestos ao manusear uma matéria carregada de tempo, como uma memória dos toques. O gesto é a expressão de um corpo que, a cada instante, lida com o conjunto de memórias inscritas nele. Com esses gestos, a artista ergue objetos que crescem como corpos ocos ou seres compostos por fragmentos suturados. Ergue paredes, inventa novos lugares, novos territórios. Com os gestos que herda, ela toma parte no uso da terra.
Sua prática se ancora também na coletividade, quando reúne um grupo de pessoas para trabalhar, estar, comer, plantar, pensar e sentir juntas. Nesses momentos, o trabalho de arte nasce da partilha de saberes sobre construção, materiais, modelagem, queima de cerâmica, entre outros. As formas de fazer narram esses encontros e condensam o saber específico de um grupo – sua maneira de lidar com a vida. Com a memória da matéria organizada pelos gestos de quem trabalha, a obra de Sallisa Rosa constrói uma narrativa em que o tempo tem a forma de seu labirinto: há várias entradas e saídas, e os caminhos são espiralados. Fora da linearidade, é possível retornar por onde se veio para experimentar odores, sons, temperaturas. No labirinto, o corpo avança por intuição, arrisca perder-se apenas para ver o que há do outro lado de um muro. Há sempre outros lados – e cada caminho leva a outro.