Conferir Félix Guattari, Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1993, p.31.
Maria Auxiliadora (1935-1974) foi a quarta filha de uma família de agricultores, composta de dezoito irmãos, originária de Campo Belo (Minas Gerais), que se mudou para São Paulo quando ela tinha três anos. Residiram em diversas regiões da cidade, incluindo a Casa Verde, um conhecido bairro de sambistas. Auxiliadora começou a trabalhar muito jovem, por volta dos doze anos, o que a impediu de continuar seus estudos. Foi babá, copeira, cozinheira e também bordadeira, até conseguir se dedicar exclusivamente à pintura.
Como muitos outros artistas negros, Auxiliadora não estudou formalmente arte, embora tenha crescido em uma família profundamente artística – entre os seus estavam escritores, pintores e músicos. Comenta-se que sua mãe, artista que esculpia figuras em madeira e vendia na praça da República, foi quem a incentivou a pintar. Seu envolvimento profissional com as artes ocorreu em 1968 e durou até 1974, quando faleceu aos 39 anos em decorrência de um câncer. Nesse breve intervalo de tempo teve uma intensa produção e circulação, além de frequentar o grupo liderado pelo poeta Solano Trindade em Embu das Artes. Conheceu críticos e colecionadores, o que permitiu a divulgação de sua obra, embora classificada quase sempre como primitiva ou naïf, uma fixação simplista e elitista que não reconhecia as qualidades formais de seu trabalho. Em 1971, conseguiu sua primeira exposição individual na biblioteca do consulado dos Estados Unidos, em São Paulo.
Em termos formais, Auxiliadora desenvolveu uma técnica própria de pintura. Entre suas inovações estava o preparado de gesso que aplicava nas pinturas, o que conferia uma tridimensionalidade ao trabalho. Sua técnica evidencia detalhes meticulosos, particularmente nos rostos, mãos e vestimentas, conferindo um sentimento de intimidade e autenticidade. Sua paleta de cores vibrante realça a vitalidade dos personagens, enquanto a composição sublinha os pormenores que humanizam e realçam cada pessoa retratada. Essa atenção aos pormenores e às cores indica um cuidado estético que intensifica a narrativa de valorização da cultura e da subjetividade de pessoas negras. O elemento têxtil e a relação com a moda se destacam; a presença constante do bordado a singulariza. A artista exibe uma estética que conjuga elementos de realismo com componentes de confabulação, presentes sobretudo nos trabalhos em que a temática das religiões afro-brasileiras é abordada.
Auxiliadora criou uma poética da intimidade negra que recompôs “universos de subjetivação artificialmente rarefeitos e re-singularizados”.1 Seu trabalho, formado a partir da predominância em suas pinturas de uma semântica notadamente centrada na intimidade, é nutrido por um repertório visual que celebra a criação de beleza e intimidade através de cenas cotidianas, familiares, íntimas, religiosas, laborais, festivas e alegres de sua comunidade, com obras que expressam um sentimento de pertencimento capaz de simbolizar uma existência coletiva.