No cruzamento entre fé, sonoridade e pertencimento, Gê Viana investiga as vibrações que sustentam comunidades negro-indígenas, nas quais a música não é apenas expressão cultural, mas inscrição histórica carregada de insubmissão. Sua pesquisa parte da experiência e desdobra-se como uma narrativa viva, conectando corpos, territórios e afetos ao entrelaçar memórias reais e fictícias. Assim, a artista desmonta cenas cristalizadas na historiografia oficial e amplia leituras sobre as heranças culturais no Brasil. Articulando uma arqueologia visual e sonora que remonta pedaços de registros – dentro do discurso hegemônico ou no imaginário popular –, ela cria obras que se tornam símbolos de resistência.
Ao desafiar narrativas coloniais, Viana resgata a dignidade de populações marginalizadas e elabora uma prática afetuosa que transita entre o analógico e o digital. Suas obras deslocam marcas da violência racial e instauram sentidos de libertação imaginativa, algo que Édouard Glissant chamou de “superação do trauma colonial”. As radiolas do Maranhão, as batidas do reggae e os tambores dos terreiros emergem como camadas sensíveis em suas produções, ressoando memorações que desafiam o silenciamento histórico. A tradição do reggae maranhense, captada pelos sentidos da artista, revela-se como um gênero que, embora marginalizado, construiu um território próprio, enraizado nas diásporas negras e na luta pela permanência. Potentes sistemas de som e ritmos ancestrais estruturam sua obra, em que ruídos, ecos e pulsações atuam como forças insurgentes que entoam celebrações comunitárias, formando uma tessitura que transcende a experiência estética: são rastros de uma trajetória coletiva que desafia o esquecimento.
Para além do impacto harmônico, sua prática carrega um compromisso político inegociável. Suas imagens evocam o passado das diásporas, mas sem fixar esses corpos na dor – pelo contrário, ela os insere em universos poéticos de fabulação, resistência e futuridade. Suas criações operam como portais nos quais os tempos se confundem, e os ecos de outras histórias ainda podem ser escutados.
A fusão entre arquivo e criação especulativa revela uma busca por continuidades interrompidas, por narrativas soterradas que insistem em emergir. A cada justaposição de imagens, a cada deslocamento de uma fotografia antiga para um novo suporte, a artista constrói uma cartografia em que todos os tempos vibram juntos, e na qual o futuro não é apenas uma espera, mas um chamado à invenção. Seja na reconfiguração imagética ou na amplificação de frequências seculares, sua poética constrói um espaço onde continuidade e ruptura coexistem. Suas obras não apenas documentam, mas abrem caminhos para que as sonoridades visuais permaneçam como matéria pulsante, promessa de futuro e convite à escuta de sussurros antigos que nunca deixaram de vibrar: a melanina, o amor, a fé, a luta, a invenção e a comunidade.