Muitas são as notícias na mídia em que celulares, guarda-chuvas e furadeiras foram confundidos com armas de fogo; situações nas quais vítimas inocentes, sobretudo homens de cor, foram assassinadas pela polícia, em uma desculpa com a qual mais a vida e humanidade de um homem de cor (em sua brutal maioria) foi perdida diante de uma sociedade dividida por um pacto ao mesmo tempo invisível, mas também de cor, que segue em uma marcha coletiva, como se nada tivesse acontecido. Para o fotógrafo Ernest Cole (1940-1990), essa situação é mais próxima do que parece: uma câmera na mão teria sido (e foi) o suficiente para colocar sua vida em risco e, caso “confundido”, tivesse sua humanidade capturada por um pacto entre uma minoria branca tão explícito que se oficializou enquanto regime de separação social e política por mais de quatro décadas.
Registrando a violência do apartheid na África do Sul durante as décadas de 1950 e 1960, a obra de Cole nos lembra quão próximas são as tecnologias bélicas e fotográficas, por exemplo, nas ações de atirar em alguém e tirar uma fotografia, assim como na engenharia explosiva de impacto para ativar um obturador ou um gatilho. Foi esse sistema de segregação política e imagética que forçou a fuga de Cole para os Estados Unidos, em 1966, deslocamento no qual conseguiu levar os negativos fotográficos. Permanentemente banido de seu lar e residindo em Nova York, Cole organizou seus escritos e relatos fotográficos em primeira pessoa, dividindo-os em catorze capítulos que carregavam títulos como “As minas”, “Viagens de pesadelo”, “Apenas para brancos”, “Educação pela servidão”, “Herdeiros da pobreza”, “O consolo da religião” e “Classe média africana”. Lá publicou um dos primeiros trabalhos a expor as injustiças do apartheid para o resto do mundo: House of Bondage [Casa da servidão] (1967).
Inicialmente criado como um fotolivro, foi através do toque das mãos ao folhear as páginas e do olhar atento a uma imagem naquele objeto impresso que House of Bondage se espalhou por diferentes públicos, que poderiam seguir a estrutura narrativa do livro ou pular para algum capítulo específico, como os já citados. Mas, à medida que a fotografia de Cole passou a circular em exposições, seu testemunho fotográfico chegou ao público também renovado: no lugar do toque no livro, agora existia a necessidade de o corpo se mover para perto da fotografia pendurada na parede, transferindo a sensibilidade das mãos para os olhos, atentos ao espaço expositivo; e, no lugar da narrativa em capítulos, a história contada pela seleção e organização de alguns dos momentos capturados pelo fotógrafo.