O boxe sempre foi mais do que punhos. Nas mãos de Dorothée Munyaneza e do Boxe Autônomo, ele se torna escuta, linguagem para o não dito, modo de estar junto na tensão e no cuidado. Essa noite compartilhada coloca em diálogo duas práticas distintas, mas sintonizadas – uma nascida da poética diaspórica dos palcos, outra da pedagogia cotidiana da Casa do Povo.
No centro está Version(s) [Versõe(s)] (2025), obra da artista ruandesa-britânica Dorothée Munyaneza, criada em conversa com Christian Nka, ex-pugilista dos subúrbios de Marselha, e o músico Ben LaMar Gay, de Chicago. Entre retrato e invocação, a peça navega pelo espaço carregado em meio a sobrevivência e transmissão. No ringue, em movimento, Munyaneza busca o que a história não registrou: gestos passados em silêncio, saberes guardados na memória muscular, as contradições da masculinidade forjada sob pressão. A luta não é encenada – é desmontada, ressignificada, acolhida.
Se em Version(s) o ringue vira palco, na Casa do Povo ocorreu o inverso. Desde 2016, o Boxe Autônomo transformou o centro cultural em academia antifascista. Nascido do desejo de resgatar o boxe do machismo e da institucionalização, o grupo surgiu em aulas itinerantes por ocupações e favelas até se tornar parte viva da arquitetura da Casa do Povo, com treinos diários que se mesclam harmoniosamente ao ritmo do prédio, ecoando sua história de pedagogia radical e prática coletiva. O ringue vira espaço democrático: aberto, poroso e autogerido, onde corpos renegociam seu lugar.
O encontro com Munyaneza não busca fundir essas práticas, mas colocá-las lado a lado para observar o que ressoa no silêncio compartilhado antes do movimento, na respiração após o contato. Tudo se desdobrará em alguns dias de oficina e em duas noites em que Version(s) será apresentada em montagem especial, contaminada pelo Boxe Autônomo e seguida de diálogo coletivo. O boxe, tão associado à dominação, transforma-se em outra coisa: território de relação, ruptura e reparo. Entre os subúrbios de Marselha e o bairro do Bom Retiro em São Paulo, entre arte e prática cotidiana, entre história pessoal e reinvenção coletiva.